Doctor Who 10×06/07/08: As sombras da realidade, da memória e da verdade

“E em algum lugar despercebido no silêncio ou na escuridão, já começou.”

Questões sobre a essência da realidade e da verdade e sobre o poder das memórias e do consentimento permeiam a tríade de episódios Extremis, The Pyramid at the End of the World e The Lie of the Land, arco da décima temporada sobre a “invasão” dos Monges a terra.

Uma história em três partes que traz elementos consagrados de obras como Matrix e 1984, para abordar não só a questão do livre-arbítrio e do futuro da humanidade, como também para aprofundar e enriquecer a relação entre o Doutor e a companion Bill por meio de escolhas e sacrifícios de ambas as partes.

Extremis, primeira parte do arco – e talvez a melhor resolvida – apresenta o conceito de uma realidade simulada por meio de elementos que unem ciência e religião, ao mesmo tempo em que aproveita bem a cegueira do Doutor dentro do roteiro do episódio. É o livro proibido e mortal que precisa ser lido e é por meio do Veritas que iniciamos a busca pela noção de verdade que permeia as três partes desse arco.

Também é em Extremis que conhecemos a verdade – Ops! – sobre a razão de Nardole (Matt Lucas) estar ao lado do Doutor, uma vez que descobrimos também qual é o conteúdo do misterioso cofre, cuja presença é uma constante ao longo da temporada. Michelle Gomez surge mais uma vez magnífica como Missy em uma cena que acentua o caráter dúbio e complexo da relação Doutor/Mestre.

The Pyramid at the End of the World, por sua vez, sai do plano do individual e passa a trabalhar a ameaça dos monges a nível global. A simulação da terra já foi feita e a misteriosa raça de aspecto cadavérico já encontrou um ponto fraco na história. O relógio do fim do mundo – inspirado tanto em sua versão real, quanto em abordagens como a de Watchmen – aproxima-se da meia noite enquanto a humanidade segue sem saber qual será a catástrofe verdadeira.

A trama relacionada à ameaça biológica, ainda que fique um pouco deslocada do centro do um arco como um todo, serve para reforçar a ideia tão presente em Doctor Who de que pequenos gestos e pessoas comuns podem definir os rumos de toda uma civilização.  Argumento reforçado na escolha final de Bill, no sacrifício do consentimento e do amor que troca a liberdade da humanidade pela salvação do Doutor.

Todo o desenvolvimento e a alegoria acerca da cegueira do timelord – que nasce de seu sacrifício para salvar Bill e se encerra no sacrifício da companion para salvar o Doutor atinge aqui o seu desfecho e seu ápice, – do mesmo modo em que a relação entre os dois personagens torna-se uma das coisas mais fortes e devastadoras da décima temporada.

Esses elementos de sacrifício, e sobretudo, as suas consequências são por fim trabalhados com mais intensidade em The Lie of the Land, um episódio que rapidamente evoca conceitos da obra distópica de George Orwell, e que trabalha questões como o impacto das notícias falsas em uma sociedade. Uma sociedade, nesse caso, que vive sob a ilusão coletiva de que os Monges sempre estiveram na Terra e acompanharam o desenvolvimento da humanidade.

É nesse cenário onde as memórias são proibidas e reprimidas, que Bill agarra-se ao ideal que construiu em torno da mãe que nunca conheceu para encontrar a realidade. Uma realidade que vai se esfacelando quando ela percebe que o Doutor está do lado dos Monges.

Toda a entrega de Pearl Mackie fica evidente na cena de profunda desilusão e desapontamento da companion ao perceber que aquele homem que ela tanto admirava era uma mentira. Peter Capaldi, igualmente, mostra mais uma vez todo o seu talento e versatilidade na pele do Doutor, ao oscilar de modo tão rápido e certeiro entre as diferentes nuances e reações do personagem.

A resolução desse conflito em específico, no entanto, me causa sentimentos mistos. Ainda que funcione bem  dentro do roteiro do episódio, talvez tenha sido realmente “demais”. O fato de ser um plano tira bastante do peso dos tiros de Bill e da pseudo-regeneração do Décimo Segundo. Mas fica evidente aí o desejo sádico do showrunner Steven Moffat de parar momentaneamente os corações dos whovians.

A resolução do arco resgata elementos de episódios como The Pilot, para colocar mais uma vez Bill no centro do sacrifício e do destino da Terra. A ideia de que são as idealizações do que poderia ter sido que destroem a ilusão causada pelos Monges pode até parecer ingênua demais, mas se encaixa bem na proposta da série – que já usou inclusive algo parecido em The Rings of Akhaten, da sétima temporada.

Além disso, o momento em que o Doutor deixa claro que aguenta as contradições e erros da humanidade por conta de pessoas como Bill é de encher os olhos e nos deixar cada vez menos preparados para o fim da temporada que se aproxima.

O arco formado por Extremis, The Pyramid at the End of the World e The Lie of the Land consegue desenvolver uma história a partir de diferentes pontos de abordagem e construção narrativa, do mistério religioso e da realidade programada, passando pela trama da política global e da ameaça biológica até chegar a uma realidade distópica, evidenciado mais uma vez a capacidade que Doctor Who tem de transitar entre diversos gêneros da ficção.

Ao longo desse caminho, no entanto, comete algumas falhas, sendo o modo como o mistério do cofre é resolvido e a presença subaproveitada da Missy em The Lie of the Land, os pontos mais evidentes. Mas também ganha alguns pontos na tão almejada questão da representatividade com a presença da personagem Erica (Rachel Denning), importante em The Pyramid at the End of the World sem que sua estatura seja uma questão.

O saldo desse arco em três partes é de mais um dos grandes momentos em que Doctor Who consegue trazer elementos de crítica política e social para uma história que vai muito além da invasão de monstros de aparência cadavérica, mas que dialoga também com as nossas próprias noções do que é real e verdadeiro.

Uma série de episódios que consegue incutir ainda mais camadas e carisma a figura de Bill Potts, notadamente uma das companions mais interessantes da série moderna. E que, verdade seja dita, – Ahá! – torna ainda mais difícil a hora em que veremos o Décimo Segundo Doutor  finalmente – e dessa vez realmente – irromper nas temidas e arrebatadoras chamas douradas da regeneração.

2 respostas para “Doctor Who 10×06/07/08: As sombras da realidade, da memória e da verdade”.

  1. ótimo texto! 🙂

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    1. Obrigada! Se quiser acompanhar as outras reviews da temporada (sim, to devendo a de oxygen): https://madmerlim.wordpress.com/category/episodios/

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